Oratória

Se as inclinações da meninice perdurassem na edade adulta eu deveria ter-me tornado orador de nota, taes os pendores que manifestei naquela época pela declamação estulta.

Diariamente, ahi pelos quinze anos, quando mal conhecia de cór, ensinada pelo João Ribeiro, a definição e a divisão da gramática: "Gramática é um conjucto de regras segundo as quaes se fala e se escreve correctamente uma língua; divide-se em quatro partes – fonologia, taxinomia, morfologia e sintaxe", eu pendurava-me em cima de um forno de tijolos que havia no quintal de minha casa e atroava os ares com meus longos discursos, de uma palavreado bombástico, cheio de alusões aos visinhos, enfáticos e quasi sempre mal-creados, que invariavelmente terminavam pela oportuna intromissão de meus paes, reclamadas pelas objurgatórias que continham.

Confesso, não obstante, que de inicio, ao assomar aquela "tribuna", construída para assar pães, cabritos, perús e congeneres petisqueiras, e não para os meus incipientes e torvos vôos de oratória, eu me aprumava com a melhor das intenções, egual a de todos os oradores, nos comicios ou no jury, para os quase as idéas afluem solicitas e perfeitas quando não há quem importune com apartes intempestivos ou risotas e gestos irreverentes.

Principiava em regra as minhas arengas com frazes a Acacio, cheias de brilho e ressonancias e como muitas que, ao depois, no correr da vida, tive ocasião de ouvir:

"Falarei a um pulpito inteligente que me ouve por toda a parte, e falarei com entuziasmo que a minha vóz proclama". "Homens e mulheres que me ouvís, prestas atenção ao que vae falar o vosso orador". Mas, ao entrar em seguida na exposição prometida áqueles homens e mulheres que só existiam na minha imaginação, porque, lá no terreiro, de "viva alma" só havia meia dúzia de galinhas, o galo ciumento e dois ou três frangos estagiários, que perambulavam indiferentes á minha palavra, logo surgiam por cima do muro que divisava a nossa residencia, préstes como a bruxa das minas de Salomão, os olhares acirrados e a carantonha queziliada de duas ou três das quatro moças casadeiras que havia na casa visinha, que detestavam letras em vóz alta, nunca se conformaram com as minhas orações e pertenciam decerto á classe dos individuos inteligentes que acham que o "silencio é ouro" e que em "bôca fechada não entram moscas".

O aparecimento daquelas jovens, que eu não podia considerar umas beldades, mesmo naquela edade e com a minha fantazia, premiando-as assim com um ramalhete de expressões romanticas, pois, éram feias a não acabar mais, todas ellas côr de cuia, cabêlos pretos e lisos, enfartados e duros, de índio, mal dentadas e commumente em "toiletes" pouco atraentes, de chita desbotada e suja, transtornavá-me logo o fio da alocução e lá deixava eu a minha catilinaria ecletica e impetuosa, dirigida aos galinaceos, para dedicar-lhes exclusivamente, daí por deante, a inspiração que sobrevinha a meude engrossava de sérias invectivas.

Uma dessas moças, que éram irmãs e se entregavam ao mistér modestissimo de lavar roupas, e de passar, para algumas famílias da cidade, chamava-se Maria e éra aquela que mais embirrava com as minhas orações. Lembro-me que em uma daquelas conjucturas, voltei-me para o feminino grupo que se apoiava sobre o muro e pespeguei-lhe á face um elogio deste teôr: -

"Maria, minha Maria, vae ver a tua tia, não te rias, tu és uma cria..."

Como éra rasoavel que sucedesse, de lá não gostaram do verso, botaram-me uma língua de palmo, chamaram-me "sem educação" e foram queixar-me á minha mãe.

A’ tarde houve reclamações em casa, de que resultaram mais uma vez os costumeiros "pitos" á insolencia e atrevimento de minhas atitudes, resolvendo eu, de mim para mim, ensaiar umas rimas mais apropriadas para, de outra feita, premiar condignamente aqueles mexericos.

Longos annos passados convenço-me hoje de que a oratória tem mesmo dessas dificuldades. Os obstáculos que encontrei na meninice, através da intrugice e da ogeriza daquelas moças indiscretas, deparei do mesmo modo em outras fázes da vida, quando ouzei "afrontar" algumas vezes determinados auditorios. Há individuos importunos e inoportunos que trepam commumnte os muros da critica, para nos atormentar e confundir as palavras e as idéas mal élas brotam á flôr dos lábios, esquecendo-se quasi sempre da "roupa suja" que trajam, de tal modo que eu, por fim, abandonei a tribuna dos meus discursos oraes que tiveram sempre a pouca sorte de serem atrapalhados, desde os albôres da juventude...

Mas, voltando ao meu quintal e aos meus ensaios tribunicios, lembro-me que em certo dia entraram em casa, acompanhados de meu Pae, dois homens rusticos, sem paletós, conduzindo ferramentas, dirigindo-se para o terreiro.

Acompanhei-os. Lá assisti ao desmoronamento de todos os meus sonhos, ouvindo meu Pae dar-lhes esta ordem:

"O serviço é esse. Vocês demulam esse forno..."

E o forno foi destruido . E a "tribuna" das minhas entuziasticas arengas caío de uma vez par sempre. E no local levantou-se um galinheiro... Ó vida! Ó vida! Como suspirava sancho deante da imcompreensão do mundo ao valôr do seu Senhor: "és sempre, pela tua maldade, a responsavel única pelos talentos que morrem no berço..."

Daí por deante não pude mais entoar as lôas da minha oratória, nem ás minhas despreocupadas galinhas, então "importantes" no galinheiro novo, nem ás impertinentes raparigas do outro lado do muro. Sem duvida que as Academias os Tribunaes, as camaras, os salões e as praças publicas perderam mais com as picaretas daqueles homens sem pacós do que perderam os celeiros da terra quando desabalaram do céo as chuvas torrenciaes do diluvio...

Annos depois, indo eu a Brotas, encontrei-me certa ocasião com a Maria. Éra a mesma. Feia como sempre. Apenas bem mais velha. Conversei com éla. Perguntei-lhe a respeito de sua família.

Num certo instante Maria desabotoou um sorriso amarélo nos labios sofredores e perguntou-me de olhos baixos:

"Sr. Gersão, o sr. se 'alembra' dos seus discursos em cima do forno? ..."

Gerson de Mendonça
Presidente, Rotary Club de Jaú

           
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