José Manuel da Conceição - II (1)

De Émile-G.Léonard, O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, tradução do manuscrito original em francês por Linneu de Camargo Schützer, ASTE, São Paulo, SP, 1963, pp.56-67

O homem que abriria ao protestantismo o interior do Brasil — conquistando não apenas indivíduos isolados mas famílias extensas e sólidas —, assegurando, assim, seu estabelecimento, foi um padre. Esta particularidade — que nos reconduz à época da Reforma e às facilidades que ela encontrou no ministério sacerdotal de um Zwinglio e muitos outros — corresponde também àquilo que fôra o sonho de Feijó: a reforma da Igreja brasileira por um padre brasileiro.

Nascido em São Paulo em 1822, José Manuel da Costa Santos, que tomou o nome de José Manuel da Conceição, tornou-se padre em 1845, após brilhantes estudos realizados em Sorocaba, onde seu tio-avô era cura, e no seminário diocesano. As relações que teve bem cedo com estrageiros protestantes, entretanto, o gosto pela leitura da Bíblia que estes lhe inspiraram, a tradução alemã de uma História Sagrada do Antigo e Novo Testamento publicada pela editora protestante do Rio, Laemmert, mas sem a autorização episcopal, valeram-lhe, em pouco tempo, a alcunha de "padre protestante" e a suspeita da autoridade diocesana. Esta mantinha-o nas funções de vigário encomendado, enviando-o durante quinze anos a uma dezena de paróquias, Limeira, Piracicaba, Monte-Mor, Taubaté, Ubatuba, Santa Bárbara e, finalmente, Brotas, para onde foi transferido em 1860. Os bispos protegiam, assim, seus fiéis, contra uma influência que, sendo exercida durante muito tempo, pensavam, tornar-se-ia nociva; mas, como se afirmou, "sem que o percebessem, traçavam o itinerário da Reforma na sua diocese".

Esta má vontade por parte da hierarquia mostrava ao Pe. Conceição a impossibilidade de realizar esta reforma da Igreja no plano local, ao qual se consagrava, procurando, em cada uma de suas paróquias, reavivar a vida espiritual, centralizando-a na leitura da Bíblia. Conhece profundas crises vocacionais que ajuntaram ao seu cognome "padre protestante" o de "padre louco". Parece que Brotas, por algum tempo, restituiu-lhe a paz. Essa povoação recentemente fundada (datando de cerca de 1840) era povoada por pequenos fazendeiros, grande parte vinda do sul de Minas, os Gouvea, os Cerqueira Leite, os Garcia, os Lima. Pessoas ativas, decididas e progressistas, aprovaram sem dificuldade a construção de uma nova igreja e a substituição da velha imagem da padroeira do santuário Nossa Senhora das Dores. Conceição pregou-lhes a leitura da Bíblia, e conta-se que um velho, havendo descido com enorme esforço da serra, para se informar sobre o que havia, respondeu: "Então vou aprender a ler para estudá-la", e o fez. Às noivas que procuravam confessar-se antes de seu casamento, Conceição respondia: "Eu e você precisamos nos confessar a Deus e não aos homens".

Este episódio nos mostra que, nesse mês de março de 1862, ele procurava apenas melhorar as condições da vida religiosa na sua paróquia. Passava por uma profunda crise espiritual, exatamente a da questão da salvação e do valor meritório das obras. Como Lutero, condenava as indulgências que proporcionavam uma falsa paz, acusando a Igreja pelo seu "sistema de comutação" que "implica e explica a negação da graça de Jesus". Não lhe sendo possível continuar no exercício do ministério, quis abandoná-lo, tendo sido, por sua vontade, dispensado apenas de suas funções propriamente sacerdotais, após o que foi viver como simples particular, em uma pequena casa de campo nos arredores de Rio Claro. Aí foi encontrá-lo o missionário Blackford, atraído pela fama do "padre protestante". Este acabou por ceder às suas exortações, batizando-se na Igreja Presbiteriana do Rio em 23 de outubro de 1864.

Sua decisão, entretanto, também não lhe proporcionou a paz interior. Nova crise manifestou-se nele, em virtude da advertência bíblica "Não se zomba de Deus", crise que provinha de sua consciência de que não era bastante haver abandonado os erros da Igreja romana, depois de havê-los divulgado por tanto tempo. Três vezes evitou seus amigos missionários, subtraindo-se às suas visitas, até que, finalmente, estas outras palavras da Bíblia "O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado" trouxeram-lhe tranqüilidade ao coração. Escreveu então uma Profissão de Fé Evangélica onde narra suas lutas espirituais, num estilo convulsivo e ardente, uma das mais belas obras da mística protestante (2). Protestante pelas experiências e afirmações dogmáticas nas quais repousa, guarda ela profundamente, entretanto, o tom da literatura espiritual e da piedade católica. Neste ponto, como veremos, é o espelho fiel de seu autor.

Brotas fôra a última paróquia onde o Pe. Conceição exercera o ministério católico. Possuía ali laços familiares desde que sua irmã mais moça, Tudica, se casara com um Cerqueira Leite. Muitos de seus paroquianos haviam conhecido suas lutas espirituais e alguns as haviam mesmo partilhado. Além disso, os missionários seus amigos haviam iniciado ali um trabalho de propaganda com grande resultado, e esse foi o ponto decisivo: dirigiu-se a Brotas em meados de outubro a fim de tomar parte na campanha de pregações que deveria realizar-se durante diversas semanas, havendo pregações de casa em casa. Eis uma descrição das duas últimas reuniões, feitas por Blackford, que nos mostra o modo como eram realizadas e como se criou o primeiro núcleo protestante verdadeiramente brasileiro:

"Na segunda-feira 13 (de novembro) reunimo-nos em casa de Antônio Francisco de Gouvêa, no sítio, com o objetivo de organizar uma igreja. O Sr. Conceição pregou a mais de 30 presentes, após o que fizeram pública profissão de fé e receberam o sacramento do batismo as seguintes pessoas: Joaquim José de Gouvêa e sua mulher Lina Maria de Gouvêa, seu filho Francisco Joaquim de Gouvêa e sua filha Sabina Maria de Gouvêa; Antônio Francisco de Gouvêa, sua mulher Sabina Maria de Gouvêa e suas três filhas Belmira Maria de Gouvêa, Maria Vitória de Gouvêa e Maximina Maria de Gouvêa; Severino José de Gouvêa e sua mulher Maria Joaquina de Gouvêa. Com eles celebramos o amor de Nosso Senhor ao morrer, comendo e bebendo os símbolos do seu corpo partido e sangue derramado. Era a primeira vez que qualquer deles participava desse sacramento, ou o via. Foram horas de júbilo para o coração dos que participaram e de profunda impressão para os que presenciaram, ao menos para alguns.

"O Sr. Conceição dirigiu a oração final; julgo ter sido a mais jubilosa explosão de agradecimento que jamais ouvi. Deu graças pela vinda do Evangelho até eles, pela misericórdia que os tinha levado a ouvir e aceitar, e pelos privilégios daquela hora, etc. De envolta com as ações de graças e ferventes pedidos exortações e solicitações aos presentes para que aceitassem o livramento oferecido em Cristo. Na mesma ocasião foram batizadas as seguintes crianças: Antônio Francisco de Gouvêa, Maria Luiza, José Francisco e Sabina Maria de Gouvêa (3) e Maria Luiza, José Venâncio, Domicília Maria, Inocência, Herculano José e Elias de Gouvêa, filhos de Severino José e Maria Joaquim de Gouvêa.

"A 14 de novembro, no culto em casa do Sr. Tenório foram batizados Joaquim, Antônio Joaquim, Lino José, Honório José e Cassiano, filhos de Joaquim José e Lina Maria de Gouvêa.

"Quarta-feira, 15 de novembro, deixamos Brotas" (4).

Onze adultos membros professos e dezessete crianças batizadas, não pessoas isoladas, e sim uma grande família: os três irmãos Gouvêa com suas esposas e filhos (sete de Severino José, cinco de Antônio Francisco e cinco de Joaquim José). A seguir vieram os parentes de Conceição que, nas semanas seguintes, aderiram à Igreja; sua cunhada, um sobrinho, sua irmã mais moça Tudica. Esta atraiu seu marido, sua sogra D. Cândida Cerqueira Leite, a mais respeitada e influente fundadora do povoado, e todos os filhos desta.

Gradualmente a comunidade de Brotas desenvolveu-se de maneira extraordinária. Em 1867 possuía 61 membros professos, em 1871, 116 (e 123 crianças); em 1874, 140 membros. "Gente da vila e gente dos sítios: Buenos, Prados, Magalhães, Borges, Oliveiras, Morais, Cardosos e Cardosas, Barros, Coutinhos e Garcias. Gente de várias procedências e diversas famílias, espalhadas num raio de dez a quinze léguas por aqueles sertões. Negros e ex-escravos: em 21 de outubro desse mesmo ano de 1866, professavam e eram batizados João Claro Arruda e sua mulher Maria Antônia de Arruda; a mulher era índia; e João Claro ex-escravo e ex-sacristão de José Manoel da Conceição (5).

A igreja de Brotas foi, durante muito tempo uma das maiores igrejas protestantes do Brasil, ao lado da do Rio. É verdade que a chegada bem tardia de um pastor residente (vindo apenas em 1868) permitiu ao clero católico a restrição de sua atividade assoladora. O movimento protestante, que durante um momento parecera prestes a ganhar toda a população, deu origem apenas a uma comunidade minoritária: desde 1866 um Cerqueira Leite debatia-se sozinho, na Câmara Municipal, contra o projeto de interdição das reuniões protestantes. Limitada no seu lugar entretanto, a influência dos protestantes de Brotas propagou-se pelas regiões onde se havia originado e naquelas para onde se transferiram esses protestantes. Vimos que os três irmãos Gouvêa eram de Borda da Mata; possuíam um irmão ainda nesse lugar, Antônio Joaquim, que se converteu a convite dos outros, junto com seu genro Belisário Corrêa Leite; esta foi a origem da Igreja Presbiteriana de Borda da Mata – distante de Brotas mais de 200kms, em linha reta, incontestavelmente sua filha – fundada em 23 de maio de 1869 com o batismo de 15 adultos (dos quais seis Gouvêa, dois Leite e três de seus escravos) e vinte crianças. Tendo-se transferido de Brotas para Dois Córregos, um dos irmãos Gouvêa estabeleceu ali, em 25 de março de 1875, uma Igreja constituída de 19 membros adultos e 15 crianças.

Conceição, Pastor Itinerante

Conceição concedera, assim, os protestantismo brasileiro, seu mais forte grupo e seu melhor centro de irradiação. Brotas, entretanto, não havia sido sua única paróquia, e logo que uma Igreja se tivesse constituído punha-se ele a caminho com fito de visitar as outras localidades nas quais a desconfiança dos bispos de São Paulo o havia obrigado a peregrinar. Onde havia sido cura, para aí regressava pastor, pois recebera a consagração pastoral num presbitério realizado em São Paulo em meados de novembro desse ano de 1865.

Estas viagens, entretanto, não constituíam a tranqüila realização de um plano deliberado com os missionários americanos. Estes penetravam também pelo interior a dentro: das grandes cidades onde se haviam instalado partiam em expedições com destino a alguma localidade onde houvesse simpatizantes, e aí pregavam, faziam visitas, voltando depois às suas casas. Mas a grande campanha de evangelização que Conceição desenvolveu em uma parte considerável da província de São Paulo, durante três anos, foi de origem e caráter bem diferentes.

Teve início com uma de suas costumeiras crises de melancolia. Blackford, junto a quem Conceição procurava apoio, não o compreendia. "Ensinaram-lhe na teologia que quando alguém se converte está salvo para todo o sempre, sem possibilidade de se perder, e ele, agora, não é capaz de compreender a luta, a dúvida, a angústia desnorteante do amigo. Aquele paroxismo final da velha modéstia da alma, contraída na sacristia, mais lhe parece "aberração moral ou mental" que uma crise da grande alma de santo que existe em Conceição, e que luta para se afirmar" (6). Blackford teve, pois, grande trabalho em persuadir seu amigo e subordinado de que lhe era necessário cuidar de si. Conceição pareceu concordar, mas, nota Blackford em seu diário particular, "desapareceu, sem deixar indicação alguma sobre seu destino, havendo escrito apenas um bilhete avisando-nos de que não o esperássemos em casa. No dia 3 de março comuniquei esses fatos ao Dr. Furtado, chefe de polícia em exercício, que prometeu escrever a todos os delegados da província pedindo notícias de Conceição".

Enquanto o protestantismo americano não conseguia compreender que sua própria mensagem tivera força bastante para lançar a angústia nessa alma que recebera, Conceição, - o "pastor louco" para os missionários, como fora outrora o "padre louco" para os católicos – empenhava-se em abrir, ao protestantismo, os caminhos dessa mesma província onde a polícia o procurava. No mesmo dia em que Blackford escrevia ao Chefe da Polícia, Conceição achava-se em Ibiuna, pregando o Evangelho e fora o sub-delegado dessa localidade que, impressionado pela sua mensagem, lhe dera abrigo, antes de haver recebido comunicações oficiais. Nessa viagem dirigiu-se em seguida a Sorocaba, onde havia passado parte de sua juventude, e foi tal o interesse despertado nesse lugar, que enviou a Blackford uma lista com os nomes de 90 pessoas que deveriam ser visitadas. O missionário atendeu ao chamado tendo verificado então o belo trabalho realizado por seu amigo. Este, entretanto havia regressado a Brotas, de onde tornou a voltar, pregando em Limeira, Campinas, Belém, Bragança e Atibaia. Chegando a São Paulo no dia 3 de junho, iniciou nova viagem no dia seguinte.

Visitou, dessa vez, o vale do Paraíba, que percorrera outrora como cura de Taubaté. Viram-no pregar e distribuir Evangelhos em São José dos Campos, Caçapava, na sua antiga paróquia de Taubaté, em Pindamonhangaba e Aparecida – onde se diz que discutiu com os padres – além de outras pequenas cidades pitorescas e ricas dessa região fronteira, Guaratinguetá, Queluz, Rezende, Barra Mansa, Piraí. Aí consentiu em embarcar para ir até o Rio, onde participou da consagração pastoral do missionário Chamberlain, mas a 13 de julho retomou em sentido inverso sua viagem pelo vale do Paraíba, chegando em São Paulo em princípios de outubro.

Após um mês de trabalho na capital inicia, no fim de outubro, a evangelização rumo ao Norte: Cotia, Ibiuna, Piedade, São Roque, Piracicaba, Porto Feliz, Itú, até sua querida igreja de Brotas, onde permaneceu algumas semanas percorrendo toda a região, para voltar, em seguida, por Itaquarí, Rio Claro, Limeira, Piracicaba, Capivarí, Campinas, Belém (Itatiba) Bragança, Atibaia, Santo Antônio da Cachoeira (Piracaia), Nazaré, Santa Isabel e São Paulo, onde vamos encontrá-lo a 16 de dezembro.

A 21 de janeiro seguinte (1867) reinicia a viagem do Vale do Paraíba: Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, voltando por Caçapava, São José, Jacareí, Taubaté e São Paulo; foram dezoito dias particularmente esplêndidos, com grandes auditórios simpatizantes, nessa região especialmente católica.

Permanecendo em São Paulo uma semana apenas, dirigiu-se, a 14 de fevereiro, ao sul de Minas, onde os protestantes de Brotas haviam iniciado já o trabalho de propaganda, entre seus parentes de Borda da Mata e Santa Ana do Sapucaí. Fazendo paradas em Santa Isabel, Nazaré, Santo Antônio da Cachoeira, Bragança, Amparo, Mogi Mirim, Ouro Fino, chegou finalmente à fazenda de Antônio Joaquim Gouvêa, a uma légua de Borda da Mata e depois a Santa Ana.

Em São Paulo, onde se achava de regresso a 2 de abril, esperava-o sua sentença de excomunhão, cuja promulgação havia sido até então adiada pelo bispo de São Paulo, que vacilara durante muito tempo entre a longanimidade habitual da Igreja em tais casos, e a necessidade de deter o sucesso da pregação do padre apóstata. Escreveu então um Resposta que, na opinião de seu último biógrafo, "abre a série dos clássicos protestantes do Brasil". No mesmo dia, 3 de maio, em que acabava de escrevê-la e ensiná-la, partiu novamente em viagem pelos arredores de São Paulo; sua excomunhão não impediu que um cura lhe desse hospitalidade. A 20 de maio, em companhia de Blackford, dirigia-se ao Rio; consagrou o mês de junho à evangelização dos arredores da capital. Apresentou, em uma reunião do presbitério que se realizou então no Rio, um relatório pormenorizado, no qual seu entusiasmo se traduzia em verdadeiras estrofes de louvores:

"Nós porém, que temos visto (com os nossos próprios olhos e ouvido, com os nossos próprios ouvidos) o poder da Palavra de Deus na conversão das almas, quer em sua letra quer em seu espírito;

"nós que temos visto as crianças irem, cantando e saltando, quebrar os ídolos de seus pais, e outras, pregando com a Bíblia nas mãos, a seus pais e vigários;

"nós sabemos, e com júbilo vos anunciamos que a evangelização em nosso país é a realidade mais benéfica em todos os resultados;

"e temos confiança, e ansiosamente desejamos vê-la progredir, concorrendo com quanto houver em nossas poucas forças para que mais e mais Jesus Cristo ganhe almas para sua glória" (7).

"Nossas poucas forças". Conceição havia dito também "A continuar como nos últimos tempos, antevejo que pouco poderei prestar" (8). Acabava, realmente, de fazer cinco grandes viagens no decurso de um ano. Seus companheiros de jornada – missionários como Blackford, Chamberlain, Schneider, Simonton, e ainda jovens evangelistas brasileiros ou portugueses como Miguel Torres, Modesto Perestrelo de Barros, Antônio Pedro, José Rodrigues, Carvalhosa – revezavam-se cada vez. Ele, entretanto, estava sempre a caminho. Fora já obrigado a parar em uma de suas passagens por Brotas, incapaz de continuar sua viagem. Os membros do presbitério, que acabavam de ouvir seu relatório com interesse apaixonado, julgaram necessário fazê-lo repousar e o enviaram aos Estados Unidos, para que expusesse lá o trabalho realizado no Brasil. Embarcou no Rio no início de outubro de 1867.

Conceição separa-se dos missionários. O apostolado solitário.

Regressara em outubro de 1868, para a reunião do presbitério, que deveria ser realizada em São Paulo. Suas "férias" – constituídas de viagens de conferências, pregações nas Igrejas portuguesas de Jacksonville e Springfield, além de trabalhos literários, traduções de livros e revisão de uma versão portuguesa do Novo Testamento – não o haviam descansado absolutamente. Não abandonou, entretanto, suas viagens e, no fim de outubro, regressa do Rio a São Paulo, na companhia de Chamberlain, passando por Angra dos Reis, Paratí, Cunha e Lorena. Durante sua estadia nos Estados Unidos Blackford fundara (março de 1868) nesta última cidade, um pequeno núcleo protestante. A chegada de um antigo padre provocou aí desordens contra os adeptos da nova religião, sem que a polícia interviesse (13 de novembro). O Ministro da Justiça, José Martiniano de Alencar, avisado por Tavares Bastos, em uma carta severa dirigida ao Presidente da Província de São Paulo (26 de novembro), lembrou-lhe que os cultos protestantes eram autorizados, sob a condição... conhecemos o que se segue. Nota-se que o liberalismo dos autores de Iracema e das Cartas do Solitário tirava o maior partido possível, e de maneira quase paradoxal, do texto constitucional: a interpretação desse texto, por Silva Paranhos, dez anos antes, era, como dissemos, bem diferente, e isso nos mostra que a propaganda protestante havia, decididamente, ganho a partida junto às supremas autoridades do Império. Mas nesse momento os missionários mudaram de tática.

Conceição, ao retomar seu trabalho de evangelização, trabalho que costumava realizar sem plano ou orientação, havia perdido o apoio ente os missionários. Apercebeu-se disso no presbitério realizado em São Paulo em meados de outubro de 1869: até ali seus relatórios sempre tinham sido considerados curtos e nesse ano dizem o seguinte as Atas da Assembléia: "tendo sido muito extenso seu relatório, foi-lhe solicitado um resumo deste, que pudesse ser conservado nos arquivos".

Conceição fora útil aos missionários para abrir-lhes caminho, conseguir-lhes simpatizantes em toda província, lançar os fundamentos de Igrejas. Sendo pouco numerosos, entretanto, isolados uns dos outros, separados, muitas vezes, por dissentimentos, auxiliados por bem poucos colaboradores brasileiros (e os mais merecedores dentre eles haviam sido justamente então enviados ao Rio, a fim de fazer estudos de Teologia, encontrando-se entre eles Miguel Torres, Carvalhosa, Antônio Pedro Cerqueira Leite e Antônio Trajano) não podiam esses missionários dar conta de todo trabalho preparado por Conceição. O abandono dessas almas bem dispostas, entregues a si próprias (e às investidas do clero), acabou por tornar insensível à propaganda protestante, regiões que haviam despertado as maiores esperanças. Vimos que, mesmo em Brotas, tardara bastante a vinda de um pastor residente; no Vale do Paraíba, a impossibilidade de aproveitar o entusiasmo despertado por Conceição, suspendeu durante longo tempo, para satisfação do catolicismo, o desenvolvimento desse caminho de leste, no qual apenas a Igreja de Lorena vivendo na inatividade.

Muitas vezes os missionários pediram a Conceição que se fixasse, passando da evangelização à organização. Seu temperamento, entretanto, não o permitia; tivera, sem dúvida, nos Estados Unidos, experiências sobre organizações que facilmente se reduzem à administração, e bem cedo à burocracia. Continuou no seu ministério de apóstolo itinerante. Os missionários, que, enviando os jovens evangelistas brasileiros a estudar no Rio, haviam-no privado de seus companheiros habituais, tinham outras coisas a fazer que seguir esse nativo, tão independente quanto psicologicamente incompreensível. E assim, daí por diante, Conceição fazia suas viagens de pregação só, como havia feito no começo, quando o acreditavam louco (não se estava, aliás, voltando a essa idéia?).

Nessa divergência, entretanto, havia algo mais profundo que diferenças de temperamento ou técnica missionária. Conceição, cuja experiência religiosa muito se assemelhava à de Lutero, tinha, com relação a questões eclesiásticas, uma posição vizinha à do Reformador. Saído de uma igreja cujo principal defeito fora talvez deixar-se dominar pela organização, sentia bem pouco a necessidade de uma contra-Igreja organizada. Rompendo com Roma como Lutero, almejava, como Lutero, difundir a mensagem de salvação, sem se preocupar muito em destruir instituições para elevar outras. Seu último biógrafo (9) transcreve, a esse respeito, uma página notável que é necessário reproduzir na íntegra:

"Se queremos imprudentemente comunicar a homens sem preparatório algum, verdades que lhes são absolutamente incompreensíveis, empregadas desta sorte, falsa e prejudicialmente, não promoveremos assim a ilustração. Ilustrar é conduzir o homem pensador à meditação, para faze-lo valoroso, e capaz de poder por si mesmo descobrir a verdade, que lhe comunicamos.

"Tanto seria loucura, se os pais quisessem insinuar a seus filhos malcriados e fracos as verdades que sabem; quão fátuo querer imbuir adultos sem prévia e conveniente disposição de coisas e princípios, que lhes é impossível compreender".

"Tudo tem seu tempo".

"Há muitos homens incultos que são crianças a muitos respeitos, que devem ser doutrinados com grande circunspecção. Porque o exterminar certos prejuízos e costumes úteis, usos que muitas vezes substituem a verdade mesma, por nenhum modo é isso ilustração; porém leviandade desumana, crueldade inexcedível".

"Respeitem-se, portanto, os costumes e usos antigos do povo, que, em falta de mais profundos esclarecimentos são aptos para guiá-los e contê-los no bem".

"Ó meu Deus! Eu respeitarei a religião do ignorante – a fé daqueles que não tem tantas ocasiões de conhecer-vos, de venerar-vos de um modo mais digno. Jamais servirei à vaidade e presunção, de tal sorte que abale a fé piedosa dos outros com palavras e ações inconsideradas".

Estas palavras, como se disse, "embora dirigidas àqueles que pregam o materialismo em nome da ciência, evidentemente estabelecem um princípio geral de conduta bem definido. Princípio que se opunha ao método dos missionários estrangeiros, preocupados em destruir, como supersticiosos e idólatras, os hábitos religiosos encontrados entre o povo brasileiro – enquanto o primeiro dentre eles, Kidder, fora capaz de receber que esses hábitos denunciavam, e mesmo sustentavam, a existência de uma fé ignorante, mas profunda e sincera. Manifestava-se no Brasil, uma vez mais – depois de Feijó e Kidder – a visão de uma Reforma realmente brasileira, harmonizada com o temperamento e os hábitos do país, visão que, aliada ao seu apego à evangelização itinerante, iria fazer dele "um desconhecido" para seus companheiros e amigos missionários, "que desejavam ajudá-lo, mas não sabiam como" (10).

Não tinha havido um rompimento entre ele e seus companheiros, mas sua missão não era o ministério organizado e a propaganda confessional, à qual se dedicavam então os missionários; nem mesmo se dedicava mais à evangelização itinerante, com auditórios relativamente grandes e representantes de todas as classes. O antigo cura, de boa família, possuidor de grande cultura, dedicava-se agora ao ministério de caridade e instrução religiosa entre os mais humildes. O insigne teólogo, que estava a par da literatura espiritual de toda a Europa, comprazia-se com os mais modestos conselhos de higiene como meios de obter a paz da alma. Comovente declínio de um homem que experimentara até o paroxismo, todas as lutas do espírito. Essa mesma humildade levava-o a viver essa "vida pobre" que se aproxima de São Francisco de Assis, e da qual o protestantismo brasileiro guardou admirativa memória, mesclada de alguma surpresa.

"Chegando a um sítio, diz o major Fausto de Souza, se resolvia a ter aí alguma permanência, ele procurava alguma choça ou telheiro que lhe servisse de abrigo, às vezes mesmo edificado por suas mãos e coberto de ramos; se, porém, sua demora era passageira, ele pedia hospedagem em qualquer casa, preferindo as de modesta aparência; e, antes de sair dela, procurava dar um sinal de seu reconhecimento, servindo de enfermeiro a algum doente, consolando tristezas ou mesmo prestando vários serviços humildes, como varrer, lavar, etc., etc.

"... Sua frugalidade era tal que com qualquer coisa se satisfazia durante o dia inteiro: uns ovos, leite, um pouco de farinha de milho ou de mandioca, ervas, café e açúcar, constituíam quase sempre o seu alimento. Desses gêneros, os que lhe davam agradecia com humildade; mas se assim não acontecia, também não os pedia, mas comprava-os em pequena quantidade, à proporção que deles necessitava, porque, conformando-se com a ordem dada por Jesus Cristo aos apóstolos, ele não possuía alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão, e mesmo o dinheiro que levava para o seu parco sustento limitava-se a alguns tostões" (11).

Entretanto, de maneira alguma havia ele renunciado à vida intelectual:

"Durante suas longas peregrinações ocupava as horas de ócio em escrever a lápis sermões, traduzir artigos religiosos, tomar apontamentos e notas curiosas sobre tudo o que via, observações topográficas e meteorológicas, vocábulos e termos especiais usados nos diversos povoados, procurando sua origem e raízes, quaisquer fatos que lhe pareciam interessantes da história natural, acompanhando-os às vezes de desenhos explicativos, ligeiros, mas que denunciavam rara aptidão. Quando se demorava por algum tempo em um sítio onde podia dispor de comodidade, passava a limpo seus sermões, hinos, notas e traduções, empregando em tudo muito método, clareza e belíssima letra; e todos esses papéis ele os conduzia consigo em viagem, dentro de um envoltório de pano que cuidadosamente cozia para não se dispersarem, até poder dar-lhes destino, enviando uns aos amigos, outros à redação da Imprensa Evangélica, de que não se esquecia (12).

Esta vida de pregador solitário durou quatro anos. Quatro anos durante os quais Conceição pregava aos arrieiros e viajantes que encontrava, aos pobres em cuja casa residia e dos quais cuidava, vítima muitas vezes de sevícias por parte de populações fanáticas, outras vezes considerando traumaturgo e obrigado a subtrair-se a uma espécie de culto.

Nos seus ratos encontros com os missionários, para com os quais se mostrava sempre reconhecido e afetuoso, achava-se cada vez mais fraco. No fim de 1873, Blackford convenceu-o a repousar ao seu lado, nos arredores do Rio. Conceição tomou o trem, dessa vez, mas em uma baldeação, seu pobre vestuário e seus pés descalços atraíram a atenção da polícia que o prendeu. E quando as informações recebidas lhe abriram as portas da prisão, não possuía dinheiro para comprar uma nova passagem. Continuou à pé seu caminho, sob sol e a canícula, caindo prostrado, na noite de 24 de dezembro, sob a sacada de uma venda, em Irajá, não longe de Piraí. O chefe de uma enfermaria militar vizinha, major Fausto de Souza, deu-lhe um leito. Tendo agradecido aos que o haviam socorrido, pediu que o deixassem "só com seu Deus" e morreu, tendo adormecido, ao que parece, por volta do fim da missa da noite de Natal.

O protestantismo brasileiro teve, em Conceição – que abriu seus caminhos e nimbou seus primórdios de uma auréola mística – um santo. O bondoso homem que lhe dera um leito para morrer, e ao qual Conceição não pudera proporcionar ensinamento nenhum, Major Fausto de Souza, impressionou-se de tal modo nesse contacto de alguns instantes que estudou a vida desse estranho ente errante, publicando sua primeira biografia. Convertido ao protestantismo, tendo-se tornado uma sumidade médica e política – (principalmente como presidente da província de Santa Catarina) foi seu grande defensor.

Percebe-se, entretanto, que esse santo, não obstante sua dogmática e sua ruptura com a Igreja, era ainda, pelas nuances de sua vocação, um católico (13), um desses católicos reformados como almejaram Feijó e Kidder.

[Notas]

  1. Sua biografia foi escrita pelo coronel Fausto de Souza, ligado a ele em circunstâncias memoráveis, como veremos mais adiante. Foi tratada também por Vicente Themudo Lessa, Padre José Manuel da Conceição (2ª ed., 1935). Acaba de aparecer (1950) um bom estudo feito pelo Rev. Boanerges Ribeiro, onde se encontrará uma bibliografia completa. [Nota do Web Master: O livro, que teve o título de O Padre Protestante, foi publicado pela Casa Editora Presbiteriana, São Paulo, SP, em 1950].
  2. Encontramos grandes passagens desse livro na obra de Rev. Boanerges Ribeiro que acaba de ser publicada, sob o título O Padre Protestante (São Paulo, 1950). [Nota do Web Master: o autor não explica porque não citou o nome do livro na nota anterior].
  3. Filhos de Antonio Francisco e Sabina Maria
  4. Boanerges Ribeiro, op.cit., págs. 128-129.
  5. Ibidem.
  6. Ibidem, pág.146.
  7. Ibidem, pág.171.
  8. Ibidem, pág.170.
  9. Ibidem, pág.206.
  10. Ibidem, pág.206.
  11. Ibidem, pág.200-201.
  12. Ibidem, pág.202-203.
  13. Parece que isso foi sentido pelo cônego Rossi, no seu excelente Diretório Protestante no Brasil. Depois de se referir na pág. 58 ao "sacerdote apóstata José Manuel da Conceição", o que não nos admira, escreve numa nota: "Incansável propagador do presbiterianismo manifestou, no dizer de alguns protestantes, a pobreza de São Francisco de Assis e o zelo de São Paulo Apóstolo". E isso sem protestar contra tais assimilações. É curioso ver Conceição tornar-se um argumento contra o "papado protestante" norte-americano nas Cartas ao Chefe do Protestantismo no Brasil, do espírita Luiz de Matos (Rio, 1928), citados por um protestante passado ao racionalismo, Manoel José da Fonseca.
           
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