Eber Fernandes Ferrer
Texto - depoimento de Eber Fernandes Ferrer, escrito em 31/01/2004, revisto em 23/01/2008 |
Tive o privilégio de ser aluno do JMC entre 1950 e 1958. Cheguei à Jandira/SP com apenas 12 anos de idade, proveniente de Cuiabá, capital de Mato Grosso, (quando só havia um estado) onde meu pai Eudes Ferrer era Pastor da Igreja Presbiteriana central. Minha mãe, Universina Fernandes Ferrer, havia falecido em 1942 em Itacira - Bahia e papai se casou novamente com Nanita Duarte Ferrer, que veio a ser a nossa segunda mãe. Família numerosa: éramos 12 filhos, 10 mulheres e dois homens.
Depois de cursar o primário no Colégio Barão de Melgaço, centro de
Cuiabá, em 1950 fui ao JMC para fazer a admissão ao ginásio e cursar o
colegial (matrícula No. 747). Posteriormente, cursei o Seminário
Teológico da Igreja Presbiteriana do Brasil em Campinas até 1962. Meu
tutor, Rev. Aristóteles Ferreira (que saiu do Colégio Burity, na Chapada
dos Guimarães) para estudar no JMC, orientado pelo meu pai e que mais
tarde veio a ser Pastor da Igreja de Cuiabá), foi meu 1° colega de
quarto. Sendo esquelético e franzino,
eu era na época o mais jovem aluno. Vindo do mato, logo fui
apelidado de "Chibiu", que significa "pequeno diamante". Comecei a
praticar esportes por ordem médica, para ganhar peso e corpo. Jogava
vôlei e basquete com o
Ainda aos 14 anos já fazia parte do "English Speaking Club", que se reunia em casa de Da Evelina Harper para exercícios de conversação e cantos em Inglês. Como vinha de uma família numerosa e relativamente pobre, não podia pagar os estudos no Jota. Me ofereci para trabalhar na horta-fazenda, dirigida pela família Shimizu (Tamiko, Gilda, Kazuio, Takashi, etc.) e fui admitido. Arava a terra com uma junta de bois; ajudava à colher os vegetais e as frutas; plantava e colhia arroz e trigo, etc. Adorava comer beterrabas e cenouras, enquanto trabalhava ... Porém, devido à umidade da várzea, muitas vezes com água até os joelhos, tive reumatismo em pouco tempo e o médico me proibiu de continuar na lavoura. O chofer do caminhão necessitava um ajudante e me ofereci. Enchia o caminhão de telhas, tijolos e areia para as novas construções das novas casas ou salas de aula. O acompanhava à CEASA-SP para as compras no atacado de produtos alimentícios. Por ex; apesar de ser magro, carregava sacos de 60 kg de feijão, arroz, milho, etc. e os descarregava no colégio. Formamos um grupo de voluntários para nos fins de semana substituir os cozinheiros. Certa vez, quando descascava a mandioca, cortei parte de um polegar e colei depois. Comíamos bem, quando trabalhando na cozinha: segundo os gostos de cada um ! Porém, a minha profissão melhor paga no Jota foi a de "vidraceiro". Fazia o inventário dos vidros quebrados ou faltantes nos quartos, salas de aula, nas residências, etc., e ia à S. Paulo comprar vidros novos, pasta para fixar e tinta para pintar. Os cortava com um pequeno diamante (uma razão a mais pela qual me chamavam de "Chibiu") e reparava os estragados. Ganhava 3 cruzeiros velhos por hora trabalhada. Era uma fortuna para um adolescente pobre, do ponto de vista material, mas rico em vida ! Felizmente, consegui com a “Presbyterian Fellowship Church”, de São Paulo, a metade de uma bolsa de estudos e com o meu trabalho, completava a outra parte. Faltava, no entanto, dinheiro para as despesas pessoais, do dentista ou médico, farmácia e outras. Graças ao Prof. João Euclides e sua esposa, fui adotado por uma família de S. Paulo, Sr. Vicente Themudo Lessa Filho e Da. Aleth, que me presenteavam roupas e sapatos usados, numa época em que só tinha uma muda para toda a semana. Era obrigado a ir estudar na casa do motor a óleo (na parte baixa, a caminho do campo de futebol). Enquanto estudava, deixava a roupa secando na frente do ar quente do motor e depois passava o ferro e usava no dia seguinte. Muitas vezes, lavei e passei roupa para os colegas mais afortunados, ou os substituía na lavagem da louça, para ganhar uns tostões. Porém, a família Lessa me oferecia trabalho de limpeza em suas residências em S. Paulo e/ou na Praia de São Vicente, onde ia nas férias, com o filho Netinho e a filha Alba. Lavava os carros, encerava a casa e/ou o apartamento, limpava e regava as plantas, passava roupa, limpava os vidros, etc. Com a grana recebida, me convidava ao cinema ou arcava com as despesas pessoais e ou com a(s) namorada (s). O mais importante era sentir estimado, como se fosse um verdadeiro filho.
Com a Profa. Da. Elza Fiúza Teles aprendi a apreciar a língua e literatura francesas. Seu marido, o Prof. Renato, me fez descobrir os clássicos portugueses, assim como literatos/as modernos; inclusive participando em conferências no Auditório da Folha de São Paulo com Orígenes Lessa, Tristão de Atayde e tantos outros. Sua filha Heloisa, uma das primeiras namoradinhas, me fez descobrir o fascínio do sexo e o sabor de amar. Quantas serenatas à margem do Jordão ... Fui eleito Presidente do Clube Recreativo e Cultural "Castro Alves" e organizava as serestas dos sábados à noite, passeios recreativos, etc. Com freqüência íamos até a Figueira, no alto da colina, às vezes para ver o sol se pôr ou nascer. Adorava acordar com as músicas clássicas como "Meditation de Thais" e recitar poemas de Castro Alves; participar de cenários de humor. Tocava violino três/quartos com o Isaias Gadoni e cantávamos juntos no quarteto com o Cilas Rissardi (tenor), Silas Ferreira (baixo), tanto em Jandira, como em festas na região da Grande São Paulo. Numa noite em que perdemos o último trem da Sorocabana de São Paulo à Jandira, passamos a noite em bancos da Praça e compusemos em grupo, com a poesia do Levy Silva, um sambinha chamado "Sou Carioca da Gema" ... que ainda sei cantar até hoje !
Claro que participei do coral do JMC,
masculino e misto. Fazíamos excursão
a Bauru, Rio de Janeiro, Santos,
Sorocaba, Botucatu, etc. Com freqüência fomos convidados à capital de
São Paulo: Igreja Presbiteriana Independente, Presbiteriana Unida,
Rádios, Teatros, etc. Fiz parte do Grande Coral do IV Centenário da
Cidade de SP, dirigido pelo Prof. Maestro João Wilson Faustini,
cantando barítono ao lado do seu irmão Zwinglio em l954.
Nesse ano Getúlio Vargas se suicidou ... Fizemos uma vigília cívica para velar por ele e líamos, relíamos, sua carta testamento para entender o por que do seu gesto ? Nessa idade, com 14 anos, comecei a ter consciência política, suficiente para saber que ele foi morto pelos interesses industriais e financeiros norte americanos que, ao serem vitoriosos durante a 2a. Guerra Mundial, impuseram ao Brasil um sistema de transporte rodoviário (as fábricas Ford e General Motors logo se instalaram em São Paulo) enquanto Getúlio queria com o aço de Volta Redonda (complexo industrial por ele construído) incrementar o sistema de transporte ferroviário (herança inglesa) e recuperar o fluvial (português). As "forças ocultas" falaram mais alto e continuam hoje com a ALCA à impor o modelo de dominação econômica, de sub-desenvolvimento e exclusão do Brasil e da América Latina.
Concluindo:
Toda essa
experiência de vida trabalhada e de luta, me serviu como referente
metodológica no trabalho social: ninguém valoriza nada na vida, a não
ser aquilo que é conquistado com esforço próprio. Por isso, digo sempre:
"não dêem esmolas, não ajudem à mendicância, a não ser que o mendigo
pegue a vassoura e varra a sujeira do pátio, assim conquistando o
direito a um prato de comida e à sua dignidade.” O Fome Zero nada
significa, a não ser que apóie as famílias empobrecidas à produzirem a
sua própria comida. Não é de assistência que o povo precisa, mas de
dignidade e soberania para ser mais gente !
Numa palavra: o Jota foi acima de tudo uma escola de vida ! E sempre me
recordo do Prof. Aureliano Pires recitando o poema:
"Quem passou pela vida em brancas
nuvens; quem em plácido repouso adormeceu; foi espectro de homem, não
foi homem; só passou pela vida, não viveu" (autor Francisco Otaviano dos
Reis).
Obrigado JMC por tudo que me propiciou viver e pelo ensino da sabedoria
de ser ! Se hoje sou alguém, se fiz uma carreira internacional,
trabalhando entre outras com: com o ICYE/WCC em Genebra; com as Nações
Unidas (FAO em Roma); nas Caritas da Suíça (Lucerna) e Internationalis
no Vaticano/ Roma; na Fundação Getúlio Vargas (IBRE) no Rio; no Cadastro
do INCRA e projeto ARUANDA do SERPRO – RIO; se fui assessor de
Ministérios em Brasília; Secretário de Promoção Social da Prefeitura
Municipal e Diretor fundador do Centro de Comércio Exterior (CECEMS), do
Estado do MS, em Campo
Grande (minha cidade natal); quando estudante de Sociologia participei da elaboração do Plano Piloto
de Urbanização de Curitiba e mais tarde (1984) como Sociólogo, do
Programa de Cidades de Porte Médio (UAS) nas Cidades de Cuiabá e Várzea
Grande - MT, apoiado pelo Ministério do Interior, Governo do Estado,
Prefeituras locais e pelo Banco Mundial; se conheci muitos países nos 7
continentes do planeta terra e mar, é porque o Jota me abriu a cabeça e
o coração para ser cidadão do mundo - um ser universal !
Obrigado àqueles e aquelas aos quais a vida me ligou e me fez Ser
Realizado e Feliz !!!
Tive uma filha Cláudia Regina e um filho Marcelo com a 1a. esposa Vera
Lucia Ferreira. Hoje sou casado com Claudine-Ferrer Germiquet (de origem
huguenote), Suíça francesa, e sou também Suíço por direito de
naturalização desde em 1992. Estamos de volta à Lucerna
desde o final de 2003. "Até mais ver", como diriam nossos
ancestrais portugueses... (que foram “de facto” nossos “conquistadores”
e não só colonizadores) e por isso contam a história a seu modo, como eu
também o fiz.
Eber Fernandes Ferrer, (70 anos), Teólogo, Sociólogo e Administrador,
membro do Conselho Internacional do Forum Social Mundial e da Amnesty
International (Suíça).
E-mail:
cl.eb.ferrer@bluewin.ch
Skype: eber.claudine.ferrer
NB: minhas irmãs Eunice Ferrer (São Paulo, capital) e Elba Duarte Ferrer
(Brasília - DF) também cursaram o JMC naqueles anos de ouro.
Horw, Lucerna –
Suíça
31.01.2004 (revisado em 23.01.2008) |